Quem lida com a difícil tarefa de empacotar mensagens e procurar disseminá-la pela web de alguma forma costuma se surpreender com dois tipos safados de “embrulho”, que costumam inflar os números de compartilhamento (alguns chamam essa espuma de “engajamento” sem o menor pudor). O primeiro tipo é o meme, mas não vamos ocupar muito o nosso tempo com ele. Afinal, quem não gosta de um meme? Alguns são carregados de referências pop sensacionais!
O outro é o boato. Um tipo de mensagem rasteira, descontextualizada, inverídica, mas que conforta as crenças de grupos específicos (ou reforçam suas esperanças). E não é de hoje. Histórias como o “gatinho bonsai” ou mesmo a “venda da Copa de 1998” são lembradas até hoje, enquanto confusões como “maioria de concursados aprovados é do PT”, “desastre de Mariana foi um desastre natural, diz decreto” ou “vacina estragada é a verdadeira causa da microcefalia” talvez sejam esquecidas em alguns anos. Ou não.
Foi o “outro eu” que escreveu
Informações falsas são perfeitas para validar nossas “verdades inquestionáveis” e podem ser usadas indiscriminadamente. Nos últimos cinco anos, a cada início de Big Brother Brasil, uma “crônica” de Luis Fernando Verissimo, afirmando que o programa é “o fundo do poço da televisão”. É mais um dos muitos textos apócrifos que (jamais saberemos a razão exata) ganha uma assinatura (que poderia ser Arnaldo Jabor, Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector enfim) e se espalha por blogs, Facebook ou WhatsApp como aedes aegypti em água parada.
Curiosamente, a crônica “Outro Você”, assinada pelo próprio Verissimo em 2010, é bem menos mencionada – pode repetir meu teste, uma busca por “edição do BBB é uma síntese do que há de pior na TV brasileira” associada a Verissimo (texto falso) resulta em pouco mais de 4800 resultados; já a expressão “sou um dos três ou quatro brasileiros que nunca o acompanharam” (texto verdadeiro) registra quase 250.
Tanto faz se é verdade ou a lenda, ganha quem grita mais alto. No começo deste mês, o jornalista Leonardo Sakamoto foi surpreendido por ataques associados a uma entrevista falsa. Ameaças de morte ao articulista representam uma parte dos impactos da boataria: como a correção não tem o mesmo peso, “as redes de ódio ignoram e continuam divulgando o conteúdo original”, explica.
(E aqui cabe a incrível resposta do periódico, que em seu comunicado afirma que “prima pela seriedade e autenticidade de suas matérias” e que publicou uma entrevista baseando-se apenas em “respostas encaminhadas à nossa redação por intermédio da suposta assessora”.)
Bolhas de intolerância
Claro que parece a coisa mais natural do mundo encaminhar um texto entre seus grupos da família “só porque você acredita no que viu” (ainda que dificilmente alguém vá checar isso), da mesma forma que “debater com quem discorda é cansativo e sempre termina em uma ofensa pessoal” (nesse caso, o menor esforço é a opção “mute” ou “unfollow”). Mas esse conforto mental tem um preço.
Estudo realizado no Laboratory of Computational Social Science, ligado ao Instituto de Estudos Avançados IMT em Lucca (Itália), fez uma vasta análise de dados, tomando informações baseadas em notícias científicas ou teorias conspiratórias infundadas, e suas reações no Facebook. Observou que usuários postam apenas aquilo que valida suas próprias crenças, compartilhando-as em “clusters” (grupos homogêneos de contatos) que defendem as mesmas ideias e possuem padrões de consumo de informação.
Não é a primeira vez que esse comportamento é identificado. Eli Pariser, criador da “máquina de virais” Upworthy e autor do livro O Filtro Invisível, preocupa-se com os efeitos provocados por algoritmos (como a timeline do Facebook), que direcionam apenas conteúdos considerados “interessantes” para usuários, baseando-se em comportamentos de navegação, curtidas, comentários. O resultado é a criação de uma “bolha cultural”, onde pontos de vista diferentes simplesmente não entram.
Wael Ghonim, egípcio que se tornou símbolo do uso das redes sociais durante a Primavera Árabe, fez uma dura análise destas ferramentas em uma palestra recente em um TED Talk. A criação destes “grupos fechados” que fazem circular apenas infomações que interessam (boatos ou não) reforçam discursos de ódio e nossa incapacidade de lidar com mentiras. Isso cria um ambiente onde não é possível mudar de opinião – ou pior, espalhamos conclusões apressadas pelo simples fato das mídias sociais beneficiarem a transmissão das ideias, mas não suas discussões.
Finalmente, as três forças
Além de continuar firme com “mute”e “unfollow”, bem como ignorar solenemente os comentários em sites de notícia, o que dá para fazer diante da premissa perigosa do “você pode dizer o que quiser desde que todos concordem”? Há tempos venho elaborando um “modelo” (entre aspas mesmo, talvez seria melhor chamar de “rascunho permanente”), a procura de um lugar ideal para fortalecer boas ideias. Chamo esse esquema de “três forças”. São elas:
- Crença. Todo o seu conhecimento acumulado se baseia em certezas, construídas a partir da sua relação com o mundo. Família, escola, ciência, religião, imprensa, grupos de amigos, enfim. Mas é importante que se pontue: conhecimento não significa “verdade” (aliás, o que é “verdade”?). Quanto maior a crença, menor a nossa capacidade em desconfiar, questionar, procurar novas fontes e reavaliar. Afirmar que “Deus quis assim e pronto”, por exemplo, estaria no limite máximo desse eixo.
- Resistência. Aqui me refiro a capacidade dialética, isto é, o quanto estamos dispostos a conversar, ouvir outros pontos de vista, debater e enxergar o que provavelmente não estava claro. Sem pensar muito, podemos dizer que este é o exercício mais duro dos três. Cuidado para não se confundir com a ausência total de filtros (o “maria-vai-com-as-outras”). Até porque, este acredita em tudo (muitas crenças) e argumenta pouco (muita resistência ao debate). E isso nos leva à terceira força…
- Hipocrisia. Todos conhecem gente simplória e teimosa o bastante para continuar com suas ideias a todo custo, mas ao menos é um sentimento sincero, autêntico. Os valores dessa força aumentam de acordo com o nível de dissimulação, ou seja, o “maria-vai-com-as-outras” maldoso, com um discurso artificial pautado meramente em interesses pontuais.
O que acha? É utópico, eu sei, e soa ainda mais ingênuo revisar este modelo na mesma semana que os diretores do Twitter anunciaram “algoritmos para filtrar conteúdo relevante” na ferramenta. Mas ainda me parece uma boa ideia criar conexões com pessoas que se posicionem na área verde do gráfico das três forças. Resumidamente: quem deseja compartilhar seus conhecimentos, abrir a guarda para compará-los com outros (e checá-los acima de tudo), fortalecendo sua trilha de pensamento (seja ela qual for), sem atalhos.
Sobre o autor: André Rosa é jornalista, mestre, doutor, pesquisador e professor em cursos livres, de graduação e pós-graduação, sempre procurando promover o encontro entre a comunicação e a tecnologia. Seu blog tem mais de uma década anos de vida.