Uma notícia recente, compartilhada e reproduzida milhares de vezes, apresentava um “ranking com os dez maiores sites de notícias falsas do Brasil”, referenciada por um “estudo da USP”. A facilidade com a qual esta informação foi curtida e repassada explica o tamanho da apreensão envolvendo o fenômeno das notícias falsas.
De forma simples: discute-se o fato de qualquer usuário usar ferramentas de publicação para compartilhar conteúdos enviesados ou mentirosos, construir audiência e fortalecer seus discursos — é o que o dicionário Oxford entende como pós-verdade. O tema chamou a atenção da mídia, especialmente nos Estados Unidos, diante da eleição de Donald Trump para presidente em contraste à divulgação de notícias como o endosso do Papa Francisco à sua candidatura.
Mas o que dá ainda mais força a este debate por aqui, evidenciando-o entre as expectativas para a produção e distribuição de conteúdo digital em 2017, é que a tal “lista da USP” também são notícias falsas. É o que bem explica Edgard Matsuki, no Boatos.org. Enquanto você lembra se compartilhou a informação por ter visto o link no perfil de alguém em quem confia, divido aqui algumas observações.
A verdade não existe. E não é de hoje.
Onde estava o problema quando Orson Welles interpretou “A Guerra dos Mundos”, nos anos 1930? Durante uma transmissão de rádio, ele causou pânico entre ouvintes que realmente acreditaram no que estavam ouvindo. A chave da resposta não é muito diferente nos dias de hoje. Nem sempre um ouvinte ou um leitor sabe reconhecer a diferença entre notícia e ficção. Ao menos em uma estimativa envolvendo estudantes norte-americanos, este número chega a 80%.
Diariamente, algum desavisado compartilha entre seus contatos alguma informação equivocada sobre a morte de alguém, um desaparecimento, uma greve, entre outros boatos. Logo nas primeiras linhas de seu livro “A Verdade Sobre os Boatos”, o advogado e professor Cass Sustein lembra que a existência de rumores é “quase tão antiga quanto a história humana”. Inegavelmente, a web potencializou este fenômeno. O antigo Cocadaboa, iniciativa contestadora do publicitário Wagner Martins no início dos anos 2000, levantava a questão por meio de textos controversos. Noticiou, por exemplo, a morte de Sílvio Santos (um episódio bastante recorrente). E também a do comediante Bussunda — bem antes de seu falecimento, em 2006. Essas notícias falsas são anteriores ao surgimento do Sensacionalista e sua contribuição para esclarecer a diferença.
No jornalismo
Mas quando se trata de um veículo informativo, a linha é mais tênue. Todo jornalista certamente conhece estas linhas, pinçadas do Manual de Redação da Folha de S. Paulo: “não existe objetividade em jornalismo. Ao escolher um assunto, redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma decisões em larga medida subjetivas. Elas são influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções”. O texto segue reforçando a necessidade de distanciamento e frieza possível, algo que nem todo usuário com tempo e fôlego para manter um canal informativo reconhece. “Para mim não existe uma verdade, existe ponto de vista, cada um tem o seu ponto de vista. A verdade mesmo nunca é contada”, argumentou o responsável por ao menos dez sites, ao repórter Kalleo Coura.
Chama a atenção o fato do leitor não se importar com a origem da informação, e isso nos leva a um segundo tópico.
Cada um em seu quadrado — ou em sua bolha
Em 2009, lembra Eli Pariser em seu livro “O Filtro Invisível”, o Google passou a usar variáveis locais e histórico de navegação para refinar os resultados das buscas. Inaugurou ali o que se tornaria presente em outras ferramentas: informação personalizada. A motivação é evidente. “Quanto mais personalizadas forem suas ofertas de informação, mais anúncios eles conseguirão vender e maior será a chance de que você compre os produtos oferecidos”, explica.
O efeito colateral é definido por Pariser como “bolha”. A expressão é usada com frequência para indicar as fronteiras invisíveis dos nossos relacionamentos, desenhadas a partir das nossas preferências. A hipótese de que usuários se informam apenas a partir de seus contatos de sempre faz todo o sentido. Basta lembrar que mais da metade dos usuários acredita que Facebook e internet sejam a mesma coisa.
Notícias falsas e as bolhas
É dessa forma que grupos incrédulos com a eleição de Trump, por exemplo, afirmam que algoritmos formadores de bolhas influenciaram diretamente o resultado. Estes silos de informação representam um lugar confortável para propagadores de ideias. Não importa se eles são conscientes, altruistas ou maldosos. “Eles contam com pessoas convictas em suas crenças e emocionalmente afetadas por seus medos ou esperanças”, esclarece Sustein. Assim, ficam dispostas a acreditar no que ouvem. E passam a mensagem adiante, na mesma medida em que outros grupos se esforçam em rejeitá-las. Ou, parafraseando o jornalista Pedro Doria: “loucos são os outros, nós é que somos os sensatos”.
Alvo de uma notícia falsa que rendeu, entre outras dores de cabeça, algumas ameaças de morte, o pesquisador e jornalista Leonardo Sakamoto explica de que forma é possível reforçar crenças dentro destes redutos virtuais. “Não são robôs usados para xingar tresloucadamente que causam os maiores impactos. São fazendas de perfis falsos que parecem reais e são administradas por anos. Agem de acordo com pesquisas comportamentais”, referindo-se aos recentes boatos ligados à morte da ex-primeira dama Marisa Letícia. Furar a bolha é um dos desafios para qualquer veículo informativo que deseja ser considerado relevante. Mas não é o único.
Quem banca o ofício da informação de qualidade?
Ao mesmo tempo em que gigantes como o The New York Times anunciam suas intenções para os próximos anos. Posicionam seu modelo de negócios baseado em assinantes, centenas de adolescentes em Veles, na Macedônia. Constroem sites anônimos. Publicam notícias falsas sobre Trump, apontando-os para as bolhas geradas pelo Facebook. Ganham visualizações, cliques e renda com publicidade.
Isso significa que a cruzada anti-desinformação, que passa pela responsabilidade de qualquer leitor em separar o joio do trigo, também fomenta discussões sobre novos formatos jornalísticos e modelos de negócio – um contraponto ao formato tradicional baseado no binômio publicidade e audiência, onde situações ao estilo “Catraca Livre” testam seu limite.
Checagem
Para o profissional, uma trilha possível está nas empresas que se posicionam como mídia e adotam estratégias de content marketing – obviamente não se trata de jornalismo, mas os desafios envolvendo conteúdo de qualidade são os mesmos. Paralelamente, startups como a Aos Fatos, que faz um necessário trabalho de checagem de informações, demonstram o esforço da área em enfatizar sua pertinência.
Num mundo ideal, usuários aprenderiam a verificar suas fontes enquanto organizações informativas se atentariam em buscar novas ideias, definir seus objetivos, realizar um planejamento estratégico e lutar contra o senso comum: “mão de obra barata para produção industrial de notícias”. O que nem sempre acontece. “Se conseguirmos reverter esse quadro, ou mostrar mais claramente o valor do jornalismo, poderemos achar parceiros improváveis”, ressalta o texto do jornalista Pedro Burgos, sobre o futuro da profissão. Sem mentira ou brincadeira, conversas sobre todos estes temas precisam acontecer rapidamente.∞

Sobre o autor: André Rosa é jornalista, mestre, doutor, pesquisador e professor em cursos livres, de graduação e pós-graduação, sempre procurando promover o encontro entre a comunicação e a tecnologia. Seu blog tem mais de uma década anos de vida.