A última terça-feira não foi um da fácil. Lidar com a morte é missão inglória que só piora quando causada por uma tragédia. O impacto causado pela queda do avião que interrompeu 71 vidas, sintetizado pela hashtag #ForçaChape, atordoou o mundo inteiro. Ocasionalmente, provocou abalos na página do Facebook mantida pelo site Catraca Livre.
Uma sequência de postagens apelativas envolvendo acidentes aéreos revoltou usuários, que promoveram “descurtidas” em massa. Estima-se que, de seus pouco mais de 8 milhões de fãs, 160 mil deixaram de seguir a página em poucas horas. Antes de pedirem desculpas por terem errado, justificaram a escolha dos temas ao considerarem importante “mostrarem outros aspectos como o medo de voar e os mitos… É um meio de contribuir para que as pessoas saibam lidar com problemas”.
Não faz diferença se a explicação é boa ou ruim. Ela denota o que de fato vai mudar no Catraca Livre após este episódio em favor da qualidade do conteúdo: absolutamente nada.
Máquina de gerar cliques
Criado em 2008 pelo jornalista Gilberto Dimenstein, a proposta é autoexplicativa: estimular a cultura e ações de cidadania por meio de atividades gratuitas. Não há dúvidas: trata-se de uma relevante e inquestionável missão jornalística. A questão, usando o português correto, é: qualquer empreendimento baseado em conteúdo que se sustente apenas em sua missão não consegue pagar suas contas.
Sendo assim, qual o verdadeiro objetivo do Catraca Livre? Tráfego.
É o que movimenta os produtos oferecidos por sua equipe comercial, bem como cases envolvendo produção de conteúdo e relacionamento para clientes. Os números saltam da página: centenas de milhões de envolvimentos em redes sociais, visualizações, visitantes únicos… Como conseguiram?
Diluindo sua missão editorial em meio a uma oferta de textos capazes de gerar seu clique no botão “continuar lendo”. Material que segue a “cartilha definitiva para geração de tráfego”: identificar oportunidades, caprichar nas palavras-chave e investir em divulgação persuasiva (ou “memorável”). A maior parte dele por meio de curadoria, indicações oriundas de outros veículos – ou, como relata o jornalista Alexandre Gonçalves, a “chupadoria” de conteúdo.
A reação catártica desta terça-feira, potencializada pelo desastre na Colômbia, não esconde que a decisão editorial pautada pela caça ao clique é mais antiga. O engenheiro Marcelo Ramires analisou todos os posts da fan page entre agosto de 2008 e dezembro de 2015. Identificou um aumento significativo na frequência de postagens a partir de 2014. Reconheceu ainda a constante republicação de links (um deles foi repetido 91 vezes em um ano), bem como volume maior de conteúdo sobre sexo. Por que esperar, portanto, algo diferente – antes ou depois de um acidente aéreo?
O que mudou de um dia para o outro?
Quantas vezes um veículo deve postar conteúdos em sua página no Facebook? Será que 25 vezes é muito? É pouco? Esta foi a quantidade de postagens contadas até a tarde desta quarta-feira. Levando em conta a relação entre curtidas e compartilhamentos da página, três delas tiveram desempenho individual interessante: uma curiosidade sobre o uso dos elementos da tabela periódica teve pouco mais de 300 compartilhamentos, enquanto o anúncio de um curso gratuito de fotografia foi compartilhado 600 vezes.
A grande notícia do dia, no entanto, exigiu um novo gráfico: o anúncio da função de conteúdo offline oferecido pelo Netflix. Foram quase 33 mil curtidas e 4 mil compartilhamentos – um ponto fora da curva em relação aos demais. Agora, considerando o total de usuários que indicaram qualquer dos outros 22 links do dia, o resultado é pouco mais de 2,8 mil.
Certamente os dados referentes ao “cálculo de engajamento”, que contabiliza ainda os comentários das postagens, vai crescer. Isso porque em cada uma delas o debate entre detratores e fãs da página ignoravam o teor original do link. Agora, se o indicador principal é o volume de cliques, talvez a tática faça sentido – e funcione lindamente. Além do mais, em poucas semanas, as 160 mil curtidas perdidas na página serão recuperadas.
Mas enfim, a pergunta correta a ser feita é: ter audiência importa, como sempre foi com a TV? É possível fazer um paralelo entre a ânsia por visualizações e a guerra que teve seu ápice nos anos 1990? A “catracada” insensível seria a versão digital do “Latininho” no Faustão ou a entrevista falsa do PCC no Gugu?
“É preciso basear editorialmente a análise da audiência e utilizar indicadores que realmente nos levem a conhecer nossos leitores”, apontam as pesquisadoras Amanda Miranda e Lívia Vieira, mencionando o poder dos “números comercialmente aceitos”. Em tempos de “pós-verdade”, creio que o caminho para refletir sobre como valorizar conteúdo relevante esteja por aí – ao invés de apenas descurtir ou bloquear páginas em uma rede social.∞
Sobre o autor: André Rosa é jornalista, mestre, doutor, pesquisador e professor em cursos livres, de graduação e pós-graduação, sempre procurando promover o encontro entre a comunicação e a tecnologia. Seu blog tem mais de uma década anos de vida.