A história de que o Brasil vendeu a final da Copa do Mundo de 1998 foi o primeiro grande boato a se espalhar na internet brasileira. Ainda que muita gente continue acreditando na história, uma breve análise dos fatos sugere se tratar de fake news muito antes de esse termo se popularizar.
Tudo começou após o fim da decisão da Copa, em que a França, dona da casa, derrotou o Brasil por 3 a 0, no dia 12 de julho de 1998, em Paris. Uma pessoa, cuja identidade é até hoje desconhecida, invadiu o site da CBF pouco depois da partida. No lugar do site oficial da entidade, o sujeito colocou uma página (que reproduzimos mais abaixo) contando a história da suposta venda da Copa pela Seleção Brasileira.
Em tom de desabafo, o texto faz revelações que, na época, soavam surpreendentes, mas que jamais se confirmaram.
Por exemplo, diz que o Brasil vendeu a Copa em troca de se tornar sede da Copa seguinte, a de 2002, substituindo Japão e Coreia do Sul. Isso não aconteceu. A Copa seguinte foi nesses dois países mesmo.
Diz, ainda, que a Copa de 2006 seria realizada em conjunto no Japão e na Austrália. Errou de novo. Foi na Alemanha.
Explicou também que todos os jogadores titulares teriam como contrapartida o patrocínio da Nike. Isso também não aconteceu.
Por fim, o texto avisa que todas aquelas denúncias seriam publicadas nos dias seguintes pelos jornais The Wall Street Journal e Gazzeta dello Sport. Sairiam entrevistas e provas confirmando todo o escândalo nos meses subsequentes. Nunca foi publicada nem uma linha de denúncia sequer.
Há um detalhe pitoresco: os nomes de ambos os jornais estão escritos incorretamente. E a própria redação tem um português sofrível, com pérolas como “a perca do título”.
Para não dizer que o texto erra em 100% das previsões, há um acerto: o de quem seria o campeão da Copa de 2002. Seria o Brasil. De fato, foi. Em meio a tantos chutes, acertar um é até natural.
Por que o boato pegou?
Mesmo com tantos desencontros de informação, o boato de que o Brasil vendeu a Copa de 1998 pegou no Brasil. E isso é fácil de se entender hoje em dia por alguns fatores.
O primeiro é que a internet era, em 1998, um ambiente novo e quase totalmente desconhecido. Usando conexão por telefone fixo (a banda larga só chegaria em 1999), apenas 0,67% da população brasileira acessava a internet naquela época. Para efeito de comparação, em 2018 são 64,7% segundo o IBGE.
Some-se a isso um acontecimento atípico antes do jogo. Principal estrela do Brasil, o atacante Ronaldo passou mal, tendo convulsões horas antes do jogo final contra a França. Ele chegou a ser cortado da partida. Edmundo foi anunciado em seu lugar na transmissão oficial. Porém, no vestiário, por insistência do próprio Ronaldo, que havia feito exames numa clínica particular instantes antes do jogo, o técnico Zagallo decidiu escalá-lo. A confusão atípica e mal explicada serviu de gatilho para as suspeitas surgirem.
Cabe dizer que, àquela altura, a CBF já era uma entidade sobre a qual pairavam suspeitas. Eram frequentes notícias, opiniões ou insinuações sobre casos de suposta corrupção na entidade. Não por acaso, o então presidente da entidade, Ricardo Teixeira, e a Nike, patrocinadora da Seleção, seriam alvo de uma CPI no ano 2000. Nesse contexto, a venda de um título mundial por interesses financeiros não era uma desconfiança descabida para uma entidade com aquela reputação.
Outro fator que fez o boato se alastrar foi o mau gerenciamento da crise. A CBF não agiu para restabelecer o site prontamente, o que teria lhe permitido argumentar que tinha sido vítima de uma invasão, como de fato foi. Em vez disso, simplesmente tirou do ar o site invadido gerando reações naturais na linha do ditado “quem não deve não teme”.
Mas lembre-se: eram outros tempos. Hoje em dia, quando uma invasão ocorre, os sites atacados saem do ar por algumas horas, mas logo são restabelecidos.
Uma nova versão do site da CBF só seria lançada em março do ano seguinte. Por quê? Provavelmente porque o site era um meio secundário de comunicação. Os esforços se concentravam quase totalmente na assessoria de imprensa, que se preocupava com jornalistas de veículos de comunicação de massa — televisão, rádio, revistas e jornais. Essa era a mídia forte nos anos 90. O site era praticamente um adorno. Afinal, diferentemente de hoje, menos de 1% da população acessava a internet.
Como o boato se espalhou?
Cabe uma pergunta pertinente: se as pessoas não acessavam a internet, como ficaram sabendo da suposta venda da Copa? É simples: o boato foi noticiado pela grande imprensa. Isso significa que as pessoas que acreditaram nele nunca leram o texto original. Apenas ouviram falar dele nos programas de TV e de rádio e nos cadernos de esportes de jornais e revistas.
Foi, portanto, uma somatória de fatores: o gosto amargo da surra na final, a história atrapalhada da convulsão de Ronaldo, a CBF não inspirando nenhuma confiança e uma versão pitoresca que “saiu na internet”, como diziam na época. Os próprios jornalistas noticiaram o boato porque não deixa de ser uma boa pauta. Mas muitos nunca acreditaram nele. Por exemplo, numa matéria de 2001, a revista Veja classificou de “besteirol” a venda a Copa.
Nas pesquisas pela web, encontramos separadamente os elementos da página da CBF criada pelo cracker. O texto é reproduzido em vários sites e blogs. Fotos, imagens ilustrativas e layout foram encontrados em mais de uma URL. A imagem abaixo é, portanto, uma reprodução fiel de como ficou o site da CBF após a partida entre Brasil e França. O texto não sofreu nenhuma alteração e as imagens são originais.
Façamos um exercício rápido. Se um hacker invadisse hoje o site da CBF e publicasse em seu lugar a página acima, como seriam as reações?
Bem, primeiro os jornalistas noticiariam apenas a invasão, sem nem sequer prestar atenção ao que foi escrito pelo cracker. Segundo, as pessoas entenderiam mais facilmente se tratar de fake news. Ok, ainda há muita gente que embarca em histórias falsas, mas não na versão de um cracker que invadiu e derrubou um site. Provavelmente, as pessoas se divertiriam mais fazendo piadas sobre a invasão em si do que ao conteúdo clandestino da página crackeada.
Conclusão
Não se trata de defender a CBF ou a Seleção Brasileira. Em sã consciência, ninguém defenderia a idoneidade dessa entidade depois de tantos escândalos que resultaram até na prisão internacional de dirigentes. O problema é que a história da venda da Copa não tem pé nem cabeça.
É só raciocinar. Quem é que levaria vantagem na venda desse título? E por que um jogador venderia uma Copa por propinas menores que o salário que ele certamente ganharia na condição de campeão do mundo?
Por outro lado, o boato não deixa de ser uma oportunidade de entendermos que casos de fake news independem das redes sociais, que nem sequer existiam em 1998. E que notícias falsas são passadas adiante — e podem até se perpetuar — ainda que careçam de lógica elementar.∞
Este artigo foi originalmente publicado em 28 de maio de 2012 e vem sendo constantemente atualizado e enriquecido desde então.
Sobre o autor: Cassio Politi é fundador da Tracto. Implantou programas de content marketing em empresas do Brasil e em multionacionais. Autor do primeiro livro em língua portuguesa sobre content marketing, publicado em 2013, é o único sul-americano a compor o seleto júri do Content Marketing Awards. Desde 2016, é palestrante em eventos no Brasil e no Exterior, normalmente apresentando cases bem-sucedidos de seus clientes.